Dualidade e transcendência

 Herbert Farias

“Risca-se um relâmpago/ frágil bordado no céu / então, trovão.” É esse prelúdio de luz, estrondo e leveza que inaugura o cultivo e a textura de Femear, nova criação poética de Silvana Pinheiro. Uma epígrafe entre natural e tecida, pairando sobre a poética da criação do mundo, e o percorrendo pelos muitos matizes da construção bíblica, como se a Babel de muitas vozes se alinhasse ao projeto do criador divino e à profecia da sua ausência, alternadamente louvor e denúncia.

No princípio é a gênese, o gênesis enamorado dos primórdios da terra: femear, tomado no conjunto, é o percurso poético de fecundação, semeadura e colheita de flashes garantidos pelo relâmpago primordial numa terra prenhe de história pautada na narrativa bíblica. Esse empreendimento de deitar na terra o verso demiúrgico se inicia pelos poemas “amena” e “provisão”, cujo predomínio das águas marca o provisionamento cuidadoso da gestação da vida. Em “amena”, a frágil criatura marinha, diáfana, quase invisível, celebra a delicada sobrevivência nesse mundo de verbo e história. E em breve a correnteza condutora de “a água do rio” surge tão inusitada quanto antiga, no movimento antitético de “[...] um novo rio / que é sempre o mesmo”, e que persiste nas águas incessantes de “provisão”: o movimento incansável do riacho, sua natureza transiente, se estende no trajeto simultaneamente misterioso e previsível. É então que surge, nessa natureza pendular e dialética, o homem, com a dura obrigação de sobreviver: o “sonho no olhar do garimpeiro / ...que brota das águas do rio” é a chance remota de riqueza no poema “garimpo, enquanto em “ao vento” essa luta pela vida assume tom mais pragmático, obrigado à persistência, à continuidade do esforço: “grãos caem / sob o leve peso / de sua essência / de serem colhidos / ainda uma outra vez”.

Mas o homem tangido pelo trabalho não se furta à dúvida ao perseguir o pão: os versos de “no meio do caminho” comungam com o cenário das escolhas, mas também com a pluralidade da trilha única, num somatório de experiências que se oferecem ao olhar da opção assumida. Como se pode conferir, Silvana Pinheiro expõe em Femear um mundo frequentemente regido pela dualidade. A colheita passada e futura de “respigadeira” é outra amostra dessa poética cindida em jogos de luz e sombra, passado e futuro, natureza e civilização, espera e prazer, entre outros. Não por acaso em “sombra” a luz desenha o ser, que colhe na onipresença o conforto de se saber desvendado.

Femear é assumidamente pautado no paradigma bíblico, mas no poema “de que cor são seus olhos?”, talvez o ponto culminante do livro, quando a autora se ausenta momentaneamente dessa influência, a cor, sensação específica diferenciadora, é signo de paixão, subitamente irmanada à especificidade do desejo segundo Roland Barthes: “Encontro pela vida milhões de corpos; desses milhões posso desejar centenas; mas dessas centenas, amo apenas um. O outro pelo qual estou apaixonado me designa a especialidade do meu desejo.” Esse objeto da paixão nunca se deixa encobrir pelo tempo: “inda hoje é assim / na pele de cada objeto de desejo desexperimentado, / você me queima, / quando me queima de dia /o mar em corpo é agua viva / e se me queima de noite / sua imagem é açoite / incandescente”. Um somatório de desejo em meandros e refrações, a sublimação do prazer postergado, transcrito no mapa do poema, na cartografia aquecida: “meus versos se alimentam / do prazer que adio em você / do sofrer sua distância / do sorver seus olhos / incendiando meus ouvidos / té atingir meu equilíbrio / e nunca a palavra em mim / esteve tão quente”.

O homem que nos versos de “carranca” desafia a incerteza das correntes, num instante sabedor de que é preciso afrontar as emergências, ladeia o menino de “cronicidade”, cujo ajuntamento de areia e conhecimento corre em paralelo com o brinquedo da linguagem: “este instante é seu / é tempo de digitalizar trajetos / o meu é de lhe deixar / não traçar fins / e contemplar seu crescimento / conter meus grãos / sem deixá-los entornar / e atrapalhar o que está / acontecendo / contecendo / tecendo / sendo”. A sina desigual do espírito infantil lamenta, mas insiste em “onde as crianças dormem”, num gesto melancólico e profético da multiplicidade do signo infância sob a deformação do capital. A pena de Silvana Pinheiro ora margeia a narrativa e o discurso bíblicos, ora os situa no centro do próprio verso/verbo. A luz novamente celebrada em “ode ao meu olho esquerdo” surge como efeito da cura pelo agente divino, e essa interpretação é quase inescapável. Mas não é descabido especular que o narrador de Eclesiastes inspira de perto a enunciação de “Manga-rosa”, expressão do tempo contado e colecionado na antecipação do gozo, uma idade de desejos e esperas que se compraz na degustação do futuro aguardado, femeado com ânsia. A celebração da criação bíblica e da redenção cristã não afasta percalços da cultura, antes denuncia a civilização que fragmentou os homens e seus olhares, na dinâmica fronteiriça do “muro com paixões” da cidade cindida, onde homens-universo palmilham a experiência da diáspora cotidiana, sonhando com o reencontro malgrado os anseios frustrados, mas recorrentes, da profecia e do desejo que abastecem a esperança.

Se a urbe é seccionada em guetos, o bucolismo é destronado em “luar do sertão”, tão expulso do cenário quanto o autóctone destituído da paz das referências: “parte o ser tão sem frescor / corta a morte para andar autor / e surgir em parcos termos / florescer como enxerto”. Logo adiante, “Há tempo pra tudo”, prossegue Silvana, mesmo para a palavra debruçar-se sobre si mesma nessa reverberação explícita de Eclesiastes, ocorrência deliberada do reencontro com o sagrado na palavra meditativa, num cultivo à profecia que se indigna em “Desassossego poético”, repercutindo Provérbios 1:20-33 ao parodiar poeticamente o caminho da sabedoria, tão onipresente quanto negligenciada, lamentando a indigência dos planos humanos, tão pouco afeitos à vida: “[...] lastimo a paralisia que lhes abate / a desgraça que incorpora seus ouvidos / o véu que embaralha seus olhos / o fruto de suas rígidas maquinações [...]”.

Nesse continuum profético, a voz poética se embrenha nas redes contemporâneas de tantos enleios e enganos, encontrando a captação de uma transcendência. É “ao deus desconhecido” que convém, segundo esse eu lírico alternadamente devoto e profético, tributar alguma verdade relacional. Deus desconhecido celebrado no pão, no vinho e na água, ícones de congraçamento em “universos de comunhão”, diversidade de instâncias do acontecimento cristão da revivência. “As imperfeições de Deus”, na sequência, constrói-se nos barroquismos de um sujeito relegado à pequenez da humanidade, buscando inutilmente esquadrinhar a vastidão incompreensível do seu criador, constantemente desconcertado com as supostas incongruências do caráter divino. “Lamentações” atualiza a degradação da Jerusalém de Jeremias, fazendo ressurgir na urbe contemporânea o dano e o abandono dos flagelados, pois “há um silêncio berrando / sitiando a cidade / balas achadas ao vento / alvos descêntricos / acertam ruína / destruição”.

Tal presença bíblica reina verso afora ou num enclave, como nos dois últimos versos de “dignidade”. Especularmente, em “diálogo com um amigo de jó”, a inquirição do homem dependente da divindade se torna lúdica nos dois últimos versos: “guerreiro com guerreiro fazem zigue zigue zá”. Nem se trata da suavização da peleja do homem consigo e com Deus, mas da tradução sumária dessa dialética para o registro lúdico que, no entanto, não desfaz o conflito. Atar o destino dos expatriados modernos aos deserdados de Sião do Salmo 137 é o que faz “canções do exílio”, numa comunicação com a transcendência frequentemente renovada, embora interrompida “na ilha”, ambiente poético de uma solidão quase audível, mas incapaz de fazer cessar a tessitura da rede vital, que dia e noite dribla o vazio, marcando no tempo a resistência.

Se “a mão no tabuleiro” tece a trajetória humana num jogo dialético de negociações (sempre a dualidade), ou numa dança sem encobrimento, sempre renovável, essa vivência no plano da história individual se confessa mais de perto em “Cesto de junco”: o referente dessa saga é um sobrevivente identificado com o Moisés bíblico, personagem errante que se afasta do triunfo da corte e dos cuidados garantidos rumo à identidade no distanciamento. Esse confronto liminar com a identidade é prenúncio de nova história a ser escrita no ocaso da palavra, quando o último verso silencia.

O sujeito poético de “aos seus pés” repercute a mulher que unge publicamente os pés de Jesus com perfumes e entrega, num gesto que não renega a rubrica erótica da cena: “envolvo minhas mãos / em sua pele e plantas / de pés cansados / vai o tempo / acaricio recantos / amacio um canto / um gemido / e a dor de todo o meu pranto / com o sabor de seus pés / sofrimentos”. Esse conúbio entre os ardores da fé e da sensualidade, na voz da mulher que parece, pelo menos nesse instante de entrega e gozo, ter encontrado seu par e seu quê, ecoando O êxtase de santa Tereza, de Bernini, contrasta com o último poema de Femear, “solitude”, de inquietação pela indefinição de papéis entre as contradições da sociedade: um canto de solidão de quem busca referências, o deslugar como subproduto da emancipação: “maria se refez, se refaz / e josé? / josé anda perdido / como se quisesse achar [...] não entendeu / que não há o que achar / há que apenas ser / o que for possível / e as mulheres perguntam [...] se valeu a pena [...] mas se sentem sós [...]”.

Tensionado entre opostos, o verbo de Femear se despede do leitor com a breve transição entre semeadura e fenecimento – “uma mulher nasce [...] mas tão logo murcha”. Fiel à sua humanidade, no entanto, a criação de Silvana Pinheiro não acena com o paraíso. Prefere refletir brevemente, em verbo dinâmico e aerado, sobre existência, história e fé, e com os olhos na transcendência, não abandona o chão dos muitos passos.

 

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