Prefácio do livro A rainha que piava, de João Bonino Moreira

Pedro J. Nunes

João Bonino, ou Jotabê Moreira, ou Bonino, conheci-o inicialmente de referência. Nunca sabemos se simpatizamos com uma pessoa que conhecemos de referência. Não temos obrigações com as pessoas apenas referidas, afinal das contas. Mas, como ia dizendo, insistia em dar-me dele notícias meu amigo Jorge Augusto Mattos, ex-discípulo dos tempos de Banco do Brasil. Mais tarde, era o outro Jorge, o Jorge L, da Logos (L não é de Logos, nem de livraria, e nem que a vaca tussa direi que L é esse): “— Seu Bonino esteve aqui, saiu com os braços sobraçando — pra usar uma imagem dostoievskiana, vou colocar na frase do Jorge L uma palavra que ele não pronunciou — uma pilha de livros.” Eu, distraído, devolvia ao Jorge L: “—  Ó, Jorge, quero lá eu saber quantos livros compram seus clientes. Me vê aqui esse livro do Graciliano, que estou sem nada pra ler em casa.”

Mas como aos dias melhor é que andem, andaram. Fui encontrar um dia à Távola — com letra maiúscula, que aquilo é um reino — João Bonino Moreira mais Serginho Lennon Bichara, Wilson Lugon, o grande alérgico, José Neves e Francisco Grijó. Depois é que vieram se chegando o Tião Lyrio e a turma encabeçada pelo Luiz Guilherme: Reinaldo Santos Neves mais o Renato Pacheco e o Ivan Borgo, que se sentavam a uma mesa contígua. E a esse emérito senhor, tão referido, reconheci valer quanto pesava. Leitor voraz, serial cat-killer, amante de Cèline e Beethoven e grande contador de contos verbais. Isso: contos verbais magistrais. Eu, naturalmente, comecei a pensar por que o Bonino não colocava aquelas histórias no papel. E, pensando agora no fato de que eu não acho solução para a questão nem nunca vou achar, que o Bonino a escondia atrás do sorriso de modéstia, vou terminar com uma nota breve esta notícia biográfica para começar logo a falar um pouco do livro, este livro que acabei de ler e que o leitor destas garatujas tem nas mãos.

Bonino tem umas coisas engraçadas. Entre tantas, que guardarei para situação mais propícia, conto uma. Certa feita, perguntei-lhe, num restaurante fechado lotado dos bravos soldados da liga antitabagista, quando ele acendeu, impávido e colosso, um Kent: “— Você vai fumar aqui dentro?” Ele, devolvendo-me um olhar calmo, o cigarro pendendo da boca: “— Claro. Qual o problema? Você acha que alguém faria uma reclamação a um velho com pinta de nazista como eu? Se alguém se atrever a fazer isso, eu pergunto a ele: ‘algum problema, meu chapa?’, com um tom hitleriano que sei fazer muito bem e dou o caso por encerrado.” Diante de tanta convicção, e embalado por uma necessidade de desafiar os incomodados infundida pelo Mestre Bonino, como é, às vezes, chamado sem antífrase, restou-me acender também o meu cigarrinho.

Creio que deva colocar na nota biográfica que esse sujeito de coração imenso escondido atrás da camisa delicadamente passada por dona Ioneda, sua esposa, nas manhãs de sábado antes do horário da Logos, é mais cordial do que pode parecer. Acho que encerro bem as notas iniciais — calma, leitor, o prefácio não demora a ser concluído, o “iniciais” é força de expressão — dizendo que já não me preocupam as razões que levaram o Jotabê Moreira a dilatar o tempo de suas primeiras publicações, afinal, se não me falha a memória, além de textos esparsos publicados aqui e ali ou enviados às redações de jornais de todo o País ou às editoras sem respeito com os consumidores dos livros que publicam, também de todo o País, em formas de cartas que ninguém gostaria de receber, este é seu terceiro livro. Sem falar em material que se perdeu em incêndio. A ele, pois, com notas sobre as quais, pelo que disse acima, pode recair a acusação de excessivamente afetivas. Garanto-lhes: afetivas, sim, nunca injustas, nem com o João Bonino nem com o leitor. Este verá, sem muita dificuldade, que estamos diante de um escritor que possui uma inacreditável capacidade de, mesmo com suas piadas mais escancaradas, parecer estar falando sério sobre situações risíveis. É só dar uma conferida nos dois livros anteriores a este, depois de lê-lo, é claro.

Contos, crônicas, casos, alguns deles quase reportagens não fosse a nota irônica — o Bonino que me perdoe a expressão — quase sacana que perpassa todos os escritos deste livro. (Se o leitor quer ter uma rápida amostra do humor de seu autor, largue depressa este prefácio, vá correndo ao conto “Os tico-ticos” e leia atentamente o monólogo final do burro de carga.)

Nas páginas de alguns desses trabalhos vem, no original, com letra bem desenhada, a expressão “Baseado em fato/personagem real”. Preocupação esclarecedora desnecessária. O sentimento e o comportamento humano escavados pelo autor dão-nos uma clara panorâmica do mundo real. Alguns desses caracteres são vistos todos os dias andando pelas ruas. O abutre do primeiro conto, por exemplo, um animado e corpulento senhor de olhos azuis que estava no trem que se envolveria em grave acidente daí a algumas horas após largar a Estação Barão de Mauá, no Rio de Janeiro,  e que “propunha jogos, adivinhações, contava piadas”, enriquecido graças à pilhagem dos mortos, da canalhice oculta transformado em herói, é caráter fácil de se encontrar no nosso tempo.

Mas João Bonino dá-nos mostra de um humor às vezes bastante negro. É o que acontece nos contos kafkianos “E eu?” e “O juramento fatal”. Sem falar na memória da infância, da II Guerra — uma de suas obsessões — e da crônica de algumas personagens bem conhecidas da cidade.

Li o livro de João Bonino Moreira, para construir este prefácio, com a impressão de estar ouvindo seus casos contados nas manhãs sabatinas. E se falei tanto do homem para falar pouco da obra, vai aqui um pouco de incompetência na análise desta e outro tanto de respeito ao leitor que se dispuser a ler este prefácio sem ir logo ao que interessa, ou seja, aos contos deste livro.

Só para terminar, tenho defendido comigo mesmo, sem pregá-lo a ninguém, que o autor e sua obra estão irremediavelmente atados. O que um escritor põe no papel é sua experiência, sua observação, seu modo de ver o mundo ou coisas que viveu. É assim que compõe a história de seu tempo, uma das funções da boa Literatura. Lembra-me aqui uma outra frase proferida pelo amigo João Bonino numa dessas manhãs na Logos, ao pé de uma fumegante xícara de café: “— O segredo da minha vida foi ter levado muito pouca coisa a sério.” Convenhamos, para não melindrar o amigo, que sim. Mas o leitor verá, facilmente, que atrás dos contos “nada sérios” que compõem este livro está um homem que observa seu tempo, disseca-o e, o que é melhor, ri-se dele.

Vitória, setembro de 1998.

 

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