Por baixo da pele fria, de Caê Guimarães: Ninguém está salvo do sangue e do suor das palavras

Renan Peres

 

 

Água,
somos fortes
e nada pode nos machucar,
pois mudamos nossa forma
a qualquer recipiente.
Ternos e violentos.
Feito gente.

Caê Guimarães

 

Desde o início, o verso "Somente aos olhos é permitido tocar a distância" anuncia a visão do poeta de um mundo que se desfaz enquanto apenas os elementos perenes do corpo e da vida permanecem. O virar das páginas nos apresenta a um universo de corpos em constante desintegração, enfatizando, sempre, elementos que, como a língua epigrafada de Ferlinghetti, transcendem: "É a louca anatomia, / que me faz ser todo coração". Em "Passo sem pegadas", "Pedaço de gente" e "Estava em um lugar e não estava [...] Perdia a cara no espelho", por exemplo, a desintegração física é confirmada. Mas não só: a antítese "tudo dia, [...] se apaga" acrescenta à leitura uma ideia de desconstrução da ideia rotineira de tempo (confirma-se: "Desvio as horas da imposição dos ponteiros"; "Tempo passando incomum"; "A eternidade pode-se presumir em um segundo"; "Pode ser que o tempo caiba na palma da mão"; "Querer congelar o tempo com as mãos"), como se fosse manipulável, indeterminável, e nos deixa a sensação de que há uma completa escuridão enquanto a vida comum se desfaz: "A mesma luz fraca de tudo dia, / amém, também se apaga. / Noturno travado".

Incrementando essa nova visão, algumas ressignificações, geralmente contraditórias, consolidam a hipótese: "calor gelado", "sangue esbranquiçado", "o sul é feito de nortes" – que, possivelmente, desestrutura as noções eurocêntricas de direção, e firmam, enfim, a afirmação "Fundarei um continente". Este continente, novo, destituído de poder, "sem reis, consortes ou bufões", permite aos seus sujeitos caminharem "sobre suas próprias botas". É, portanto, uma espécie de revolução que, embora subjetiva, apresenta-se potente, porque movente e transformadora; desestrutura o convencional e o desconstrói para, então, ser reconstruído sem os pilares da desigualdade social mascarada, pois tem como base o que está por baixa da pele fria. Em "Uma nova Inconfidência se configura", pode-se compreender, na ótica de um dos pontos de vista possíveis, a percepção do eu-lírico como divindade criadora que, a despeito da destronização de um rei guiado pelas noções (desconstruídas) eurocêntricas, por assim dizer, reorganiza as estruturas do corpo, da mente, da compreensão, do universo e do poder, como em "o homem e o lugar não se cabiam", onde a palavra, mais que atitude, não indica pacto com o silêncio recostado no muro – conivência, portanto.

Por fim, a presença de um elemento, o coração, acrescenta à coletânea, em tom de dicotomia, a presença da vida em detrimento da possibilidade da morte ante a desintegração física do corpo-mundo: a desconstrução por meio do sangue e do suor das palavras. O coração aparece associado ao olhar perene no verso "Os olhos da cara veem o coração?", e também como elemento de recriação da noção primeira de vida, há muito mecanizada, como em "Desligue o coração após usar". Vida e morte, dicotômicas nesta ótica, possibilitam a reflexão paradoxal de que "Estar vivo é refletir no espelho" (incremento este verso com outros dois: "Vamos nos conhecer pelo avesso. / O fim, conforme se sabe, no começo". E completo: "Estar vivo é refletir no espelho. / E ter a morte encalacrada entre as mandíbulas". Isto é – como, talvez, na preocupação de uma vida cíclica em que a morte, qual presa caçada por essas palavras de sangue e suor às quais ninguém escapa, a palavra de poeta "que vê a vida com os olhos da boca" – um corpo desconstruído, despido das convenções de direcionamento, com toda a dificuldade que esse processo apresentar. A morte e a vida, desintegradas, o medo que delas provém, tudo isso "é um recomeço de mim que despedaço" e muitas outras coisas mais. O desejo de que toda invenção dê certo e, por consequência, uma visão inteira acerca de uma geração que se liquefaz, regue a reconstrução da vida, transformada e sustentada na "resistência / que desmedimos para seguir em frente".   

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Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e o clube de leitura Leia Capixabas.

Editor responsável: Anaximandro Amorim