No interior da caverna erudita

Um sebo tem suas castas, suas hierarquias. Por exemplo, ali está a Brasiliana instalada numa bonita estante mostrando títulos de indiscutível importância: O positivismo na República, Sincretismo religioso afro-brasileiro... Assuntos sérios respaldados em severas pesquisas e resultado de fundas reflexões. Justo portanto que pontifiquem ali no pedestal, na estante de ar asséptico e superior, acima da livralhada, do populacho que chafurda por debaixo, espremido em grandes gôndolas de pintura descascada.

Bem, há o caso mais delicado e um tanto embaraçoso daquelas senhoras, as coleções, que ficam na porta do sebo se exibindo e servindo de chamariz. Suas capas, outrora belas, mostram nítidos estragos toscamente remendados aqui e ali com fita colante, esparadrapo, etc. Quase sempre, na parte inferior das coleções, como ponta de peignoir discretamente aberto revelando um pouquinho da perna e um certo ar de tentação, aparece a etiqueta preço.

Realmente às vezes valerá a pena ceder à ideia de que o importante é a beleza interior. Esqueça as aparências deterioradas e fixe-se nas possíveis maravilhas contidas no cerne dessas prometedoras coleções. Confesso que, quanto a mim, já fui seduzido pelo charme de algumas delas.

Foi assim aliás que recuperei uma fatia de um tempo saudoso ao comprar por preço de banana uma coleção completa de Eça de Queiroz, na antiga edição da Lello, do Porto.

Livros que se apresentavam numa irresistível percalina vermelho-maçã. Se você é atacado pelo vírus sabe como funciona. Durante grande parte de minha vida, já bem longa, fui consumidor de Eça, um de meus vícios mais persistentes. Mas, por mais que procurasse, jamais reencontrei aqueles livros da Lello onde li Eça pela primeira vez, na Biblioteca Pública.

Lembro-me que esses livros da adolescência longínqua carregavam um sutil e quase imperceptível aroma de naftalina que, para mim, sabia ao mais requintado Saint-Laurent.

Mas na hierarquia dos sebos há sempre o submundo espalhado pela periferia, nos cantos escuros onde, em encadernações semidestruídas, agonizam livros que não têm a mais mínima esperança de um resgate salvador. Capas roídas, pedaços de páginas saindo pelos lados como grotescas hemorroidas livrescas, um espetáculo triste acentuado pela precária iluminação.

A pouca luz reflete talvez um sentimento de piedade oriunda do fato de não se querer mostrar em toda a crueza o drama dos rejeitados. Acredito até que para esses rebotalhos haveria menor tristeza se o local fosse iluminado por velas ou lamparinas, o que lhes daria a esperança de um incêndio, de uma eutanásia redentora.

Procurei entrar mais a fundo nesse escabroso recinto do lumpemproletariado (ao menos em aparência) dos livros. Não posso me esquecer do olhar súplice da Etnografia dos povos da Mongólia Exterior que saiu dos restos da capa de um grosso volume escuro de avantajadas proporções, quase em frangalhos. Há montes de livros empilhados no chão. Creio que estejam apenas aguardando o transporte para o depósito de papéis velhos.

Aí, de súbito, como se fosse um raio de sol caindo no meio daquele monturo, vejo um livrinho faceiro encadernado em couro e muito bem conservado. Um romance transpirando ingenuidade. Título: Sangue e volúpia. Autora: Vicki Baum. Jamais li Vicki Baum, mas seu nome tem ligações com algo que não consigo determinar muito bem mas que de qualquer forma sei que é uma coisa agradável.

Na verdade, todos os de minha geração ligados em livro ouviram falar da autora, ainda que duvide que muitos a tenham lido. Uma coisa me lembro. Vicki Baum fazia parte do elenco de stars que, durante a Guerra e no imediato pós, habitava as quietas noites da província d'antanho. Imaginava-a, por exemplo, em tertúlias inacessíveis com estrelas do naipe de Ingrid Bergman ou Marlene Dietrich, discutindo scripts de filmes também imaginários. A causa? Provavelmente o próprio nome da escritora. Vicki é nome de prima que mora em São Paulo e gosta de comer banana-split no recém-inaugurado snack-bar da esquina. Baum sugere enredos complicados e misteriosos. A juncão desses dois vocábulos é um bom prato para elucubrações de adolescente cismador. Memórias vagas mas seguramente ternas.

Por isso, em homenagem ao passado, retirei a pobre mocinha Vicki Baum da infeliz companhia dos livros rejeitados. A edição é da José Olympio, série Fogos Cruzados. Procurei o ano da edição. Não consta. Claro, compreende-se. A mocinha está escondendo a idade. Ao chegar em casa, nova surpresa: o livro é confeccionado com a técnica antiga das páginas ligadas e, por isso, pude constatar que está intacto. Nunca foi aberto. É patético. Calculo que (Vicki Baum, não me ouça) esse livro deve ter sido editado há mais de quarenta anos. Não vou ficar falando muito sobre isso. Seria indiscreto.

Há porém um fato sólido: Vicki Baum está aqui na minha estante na acolhedora companhia de livros queridos. Tenho planos de, dia desses, levá-la para a praia a fim de saber, embora tardiamente, que mistérios são esses envoltos em sangue e volúpia na ilha de Bali.

Publicado originalmente no livro Crônicas de Roberto Mazzini, SPDC/Ufes, 1995.

 

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