As flatulências do fantasma

Caminhante e distraído ia eu quando o fantasma do centro histórico de Vitória me interceptou diante do apertado restaurante, de porta única e mesinhas poucas, embutido no velho prédio da rua esvaziada de nobreza de onde espiralava o convidativo aroma de comida, na hora do almoço.

De cara, pude ver que sua própria cara não era das melhores, o que, em se tratando do fantasma, era uma cara das mais indesejáveis de ser vista. 

- Ouça cá, meu digno. Passo por aqui, ao pino do dia, e o que me fisga? Este cheirinho de comida provocante que me lembra do saudoso restaurante Barão, da antiga rua da Alfândega. O olor delicioso me espicaça a saudade das comidas que comi ali, logo num dia em que ando maltratado de incontroláveis flatulências - prefaciou a conversa que se prenunciava gasosa e longa como sempre.

- Flatulências?! Você sofre de flatulências? - indaguei dando um salto-triplo para trás. Quase cheguei a dizer que nunca tinha notado aquele seu incômodo digestivo, mas era descender a detalhes grosseiros e dispensáveis.

- Depois de morto, nunca mais as tive, a não ser hoje. Em vida, era um dos meus males desesperadores pelas inconveniências que causavam. Flatulências acompanhadas de azia e eructações! Eu vivia tomando chá de jurubeba e doses em chorrilho do sal de uvas Picot. A jurubeba era colhida no pé que ficava no quintal da minha casa, onde eu tinha uma boticazinha vegetal para uso doméstico. O sal de uvas eu comprava na Pharmacia G. Roubach, farmácia com ph, não se esqueça. Apesar desse receituário, passei por desagradáveis constrangimentos sociais. Não sei por que me voltaram os repugnantes eflúvios dos quais me julgava livre. Ainda bem que só me acometiam quando eu comia baiacu.

- Você comia baiacu? - reagi diante da segunda grande surpresa que o fantasma me reservava, com as informações metabólicas daquele meio-dia.

- Era um dos meus pratos preferidos! - respondeu, secando com as pontas dos dedos funéreos um nostálgico refluxo de baba grossa.  

- Sempre achei o baiacu um peixe nojento e perigoso. Ele não é amargoso? - perguntei fazendo cara de asco, que nem assim era igual à lúrida e indigesta cara do fantasma.

- Amargo nada! Perigoso, sim, e nojento apenas para quem não aprecia sua carne apetitosa que, para ser comida, tem que estar livre das entranhas peçonhentas cujo fel é capaz de levar à morte. Até os índios sabem disso. Mas bem preparado, escuta só, bem preparado é um manjar dos deuses. Eu os comia às sextas-feiras, regados do legítimo azeite de oliva português, no restaurante Barão.

- E logo depois lhe sobrevinham ventosidades? - indaguei interessado em diagnosticar a possível causa dos sofrimentos tripais do meu amigo.

- Logo. Mas não abria mão dos meus baiacus prediletos.

- Talvez isso acontecesse por se tratar de comida feita em restaurante... - engendrei a hipótese. - Pelo que me consta, os restaurantes de Vitória tinham pouco movimento por falta do hábito de se comer fora de casa, naquela época. Almoço e janta eram refeições sagradas, realizadas no recesso das salas de jantar, sob as reproduções das santas-ceias, preparadas por cozinheiras que faziam parte das famílias.

- Você não deixa de ter razão, meu digno, quando fala dessa tradição familiar da Vitória de outrora. Mas havia também quem comia em restaurante, não apenas os solteirões como eu: cometas comerciais, visitantes de passagem por Vitória, políticos que vinham do interior e até mulheres-dama. Esses velhos restaurantes estão a pedir uma retrospectiva que você podia fazer... Eu posso dar informações privilegiadas porque frequentei vários deles, a começar pelo bar e restaurante Metrópole, com portas de vaivém que abriam para o largo Santos Dumont. Parece que estou vendo o nome escrito em letras garrafais no alto da parede voltada para a praça. E sabe o que eu fazia quando queria fugir à rotina dos restaurantes, apesar de neles ser recebido com supimpa cortesia? O seu amigo aqui, escuta só, se insinuava com diplomacia suíça para almoçar na casa do comendador Deodato, onde sempre fui acolhido com fidalguia e benquerença. A casa ficava na rua da Assembleia, hoje Muniz Freire. Um logradouro de famílias excelentíssimas e moradores ilustres, dentre os quais o patrono do lugar, Muniz Freire, que residiu no prédio que veio a abrigar o Ginásio São Vicente de Paulo, perto do Quarto de Queijo. Você estudou no São Vicente, deve se lembrar do Quarto de Queijo. Antigamente, a rua tinha calçamento pé de moleque e nela foi construída a loja maçônica Ordem e Progresso, em 1872, ano em que nasci. Chamava-se rua da Assembleia, écoute-moi, porque era onde se erguia o Congresso Legislativo Estadual, um sobradão que não existe mais - alongou-se o fantasma em seu realejo historiofônico. 

- Na casa do comendador, também serviam baiacus? - fiz a gozação que ele não percebeu.

- Nem pensar, meu digno! Baiacu era comida da arraia miúda. Eu comia porque gostava. Mas na mesa do comendador o menu era típico de uma cuisine de gente de bom gosto. Aos domingos, por exemplo, porque eu também almoçava lá aos domingos, não faltavam a galinha ao molho pardo e os pastéis recheados com carninha moída. As galinhas eram mortas cortando-se as goelas a faca, o sangue recolhido num prato de sopa com extremo cuidado para não sujar os ladrilhos do chão. Quanto aos pasteis, ah, como me recordo deles! A massa era pulverizada com farinha de trigo à medida que ia sendo aberta com rolo de madeira, especialidade da casa do comendador, se posso dizer assim. Eu pedia licença à dona Esbelta e ao comendador e comia os pasteis segurando-os com a ponta dos dedos e traçando-os nos dentes. Que saudade tenho deles, dos pasteis e dos dentes! E que sobremesas, mon cher ami. A minha favorita era a baba de moça que dona Esbelta, a extremosa esposa de Deodato, fazia como ninguém. Nesse cardápio domingueiro, baiacu causaria osga e não chegava nem na porta da cozinha - concluiu o fantasma o elástico relatório.

- Como se explicam então as flatulências retardatárias de um baiacu que você não comeu? – devolvi o assunto às suas origens gástricas.  

- É o que está me intrigando porque pensava que já tinha me livrado das impurezas das tripas putrefatas que é das primeiras decadências que se corrompem depois que nosso corpo é sepultado. No entanto... Você ouviu? Ouviu? Por que já estou até sentindo uns burburinhos dissonantes, na região abdominal...

- Então é bom você chispar fora o quanto antes, meu caro fantasma! - instei-o com determinação, agradecido ao consciencioso aviso que viera das suas entranhas ventríloquas, ou do que restava delas, se é que restavam.

Felizmente foi o que ele fez, sem nem sequer se despedir de mim e sem que eu diagnosticasse a possível causa das flatulências que o perturbavam, se bem que para tal diagnóstico me faltassem medicina e sapiência. Ou, como melhormente está no Dom Quixote: “em mal cuja causa não se sabe, é milagre que acerte a medicina.” E ai de mim, que nem médico sou.

 

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