O estrago da traça

O estrago começou na página 17 com um furo milimétrico como se cravado a bico de pena entre as palavras lábios e seios, do livro de poesias. Na página de trás, de número 18, o furo fendeu pelo meio a palavra saudade que ficou reduzida a sauade sem qualquer sentido. 

Vi logo que se tratava de traça voraz que precisava ser caçada, se ainda estivesse entranhada entre as páginas seguintes.

Feita a constatação, saí no encalço da traiçoeira, seguindo seu rastro livro adentro. Meu objetivo era pegá-la para esmigalhá-la entre os dedos, transformando-a numa pasta incorpórea, por muito nojenta que fosse essa missão vingadora.

Nas páginas 19 a 26, o furinho prosseguia em linha reta, lembrando a boca minúscula de um poço sem fundo. Dava para enfiar um alfinete através dele. A traça, porém, não se detivera por ali e, apesar do furo invasor, nenhuma ofensa foi cometida contra qualquer verso das páginas que a traça traçou. A penetração se deu no espaço entre as palavras do poeta, sem feri-las ou desfeiteá-las.

O mesmo não aconteceu nas páginas 27 e 28.

Na primeira delas, a traça deu uma enviesada para cima – é o que o rastro demonstrava – e ao invés de se restringir ao processo de perfuratriz de que vinha se valendo como método de ação, resolveu abrir um sulco sinuoso sobre a arte literária do poeta. Um pequeno cânion foi rasgado no corpo do verso “é com a máscara do meu rosto que eu me apresento ao mundo”.

Na página de trás, o estrago alcançou a tirada poética “nos momentos de angústia dolorosa me salva do suicídio a benevolência do Amor”. Ainda bem que nenhuma das palavras atingidas foi inteiramente mutilada a ponto de impedir sua leitura e entendimento, desde que com razoável esforço de recomposição mental dos trechos picotados.

Desastre maior me esperava na página 29: toda uma estrofe desapareceu do livro, com efeito equivalente na página contrária, ficando ambas literalmente esburacadas. Palavras e pontuação se perderam para sempre do conhecimento do leitor.

Já nas páginas 31 e 32 – verso e anverso uma da outra – a traça voltou ao processo inicial de atuação, ou seja, à infiltração penetrante no miolo do livro. Estaria satisfeita e empanturrada com o que devorara até ali, sobretudo com a destruição imposta à página 29?

A suposição era otimista demais para ser verdadeira e logo foi desfeita nas páginas 33 e 34 onde uma capilaridade de gretas e grutas se espalhava salteadas e sem nexo, numa bordadura de vazios. A filha da mãe se fizera insaciavelmente gulosa e impiedosamente destrutiva deixando de sua passagem o rendilhado de perfurações aberto em arabescos multiformes.

Visto contra a luz do sol, o rendilhado projetava, na página que recebia os raios luminosos, a caprichosa imagem de um conjunto de estrelas salpicadas e dispersas, lembrando constelações celestes. Sem maior dificuldade, reconheci Áries, Libra, Escorpião, Ursa Maior e Menor. Mas a minha fraca sapiência astronômica não foi além dessas poucas identificações. A caçada em que estava empenhado, atrás de uma traça famélica que nem sequer eu tinha certeza de que continuava viva, não admitia retardamentos. Urgia acelerar o percurso das páginas seguintes guiado pelas trilhas deixadas pela caça caçada. 

Ao imprimir velocidade a minha busca fui parar no rombo trágico da página 41: todo o centro dela havia sido desgraçadamente vazado com o desenho recortado (e até artístico, forçoso reconhecer) que reproduzia uma folha de parreira, através da qual era possível ler os versos impressos na página oposta. 

Como o poema que a traça destruiu tinha o título Cântico à morte do Supremo Criador, tomei sua voracidade insaciável por ato de herético atrevimento. Redobrou-se de fúria a minha fúria, não tanto pela heresia que a traça cometeu, mas muito mais pelas proporções do estrago criado na folha do livro. Nem dava para saber as razões poéticas de que se lamentava o Autor na elegia à morte do Supremo.

Felizmente, em minha embalada final e decisiva vi-me cara a cara com quem eu procurava, fingindo-se de morta em sua mesmice de traça junto à cola das páginas 48 e 49. Em dissimulada imobilidade, nem piscava as antenas filiformes.

Sem parar para pensar, dei-lhe com ódio o fim que merecia, consolando-me com o fato de que consegui preservar intactas as cento e quarenta e duas páginas restantes que teriam virado opíparo banquete, temperado com o lirismo do Poeta, se a tempo eu não tivesse matado de morte bem matada a glutona que matei.

 

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