Não passe mais pela rua do Rosário

Poucas vezes desejei tanto encontrar o fantasma do centro histórico de Vitória. Quando o encontrei, pouco faltou para apertá-lo nos braços, com incontida satisfação. Ansiava por relatar o que relatei: o trompaço sobrenatural de que fui vítima no centro de Vitória, num sábado à noite.

Eu acabara de assistir a um espetáculo no Teatro Carlos Gomes e me dirigia a medo, nestes dias e noites de sobressaltos e assaltos para pegar meu carro na mal iluminada rua do Rosário, quando fui atingido por um esbarrão abrupto que me empurrou em sentido contrário ao da minha caminhada. Algo se chocou comigo de frente, fazendo com que eu sentisse uma massa opressora me empurrando para trás em meio a um bafo cadavérico, sem que sua forma e conteúdo fossem visíveis. 

A esperança que eu tinha era a de que o fantasma do centro histórico de Vitória, com seu conhecimento das coisas do Além, pudesse esclarecer o incidente que me pareceu um pesadelo durante os intermináveis segundos em que durou, antes que, saindo de lado, eu me livrasse do arrastão apavorante.  

- Foi como se estivesse sendo empurrado na barriga, meu digno? – perguntou o fantasma.   

- A comparação é perfeita – afirmei. – Empurrado por um corpanzil volátil que eu não via, mas sentia como massa poderosa e fedorenta...

- Por Deus, então foi ele – disseo fantasma, e nunca sua voz me pareceu tão cavernosa.  

- Ele quem? – perguntei assustado.

- Ele...!  Não tenho a menor dúvida... Empurrado na barriga com bafo catingoso?... Foi ele!

- Por favor, explique-se, meu amigo...

- Num caso como este, devo falar por circunlóquios. Procure me entender, meu digno. Para bom entendedor, meia palavra basta. Quem esbarrou em você foi ele, o outro, seu adversário! Não passe mais pela rua do Rosário. É perigoso. Ontem como hoje não se deve atravessar o caminho dos maus espíritos. É tão antiga a advertência que está no Hamlet. 

- Que diabo de conselho é este? Você só faz repetir que foi ele, o outro, meu adversário! Para mim são palavras sem sentido. EU É QUE SOU O OUTRO, porque fui brutalmente atropelado e arrastado por um corpo paradoxalmente incorpóreo do qual nem pude saber se era de carne e osso ou desprovido de ambos, que me deixou recendendo a cadáver até agora.  E você vem me dizer que não sou o outro?  E que fui eu que atravessei o caminho dele quando foi exatamente o contrário, ele que cortou meus passos?

Ao ouvir minhas palavras o fantasma deu uma risada surda e absurda e disse:

- Nada de exasperações, meu digno! Mantende a calma, como dizia meu bisavô. Você se lembra do meu bisavô? Eu o apresentei num encontro que tivemos no viaduto da Caramuru... Ele estava com o aventalzinho de maçom...

Nada mais do que um encardido aventalzinho vibrando ao vento, foi o que vi naquela ocasião, pensei comigo. Mas cortei logo a derivação do diálogo, dizendo:

- Deixa seu dileto bisavô em paz e diga por que eu não sou o outro.

- Simplesmente porque você é apenas você, meu digno! – frisou o fantasma. - Vou até quebrar o código dos sigilos para falar num léxico mais claro pelos muitos obséquios que lhe devo: o outro é sempre o outro, NUNCA É VOCÊ! Nada pode mudar este fato. Além disso, o repelão que você sofreu foi uma defesa de território. Ele o considerou um caramuru invadindo o território dos peroás, nas imediações do Carlos Gomes, razão pela qual o repeliu a força bruta! Este é o âmago da questão. O que você tem a fazer, escuta só, é evitar a soturnidade daquela rua. Não passe mais ali.

- Ele me considerou um caramuru invasor? Que antiqualha disparatada! Quando nasci já tinha acabado essa brigalhada vetusta entre peroás e caramurus – porfiei com firmeza a minha indignação.

- Antiqualha para você - disse o fantasma, rindo outra vez surda e absurdamente. - Para nós, os daquela época, essa suposta velharia não vai acabar nunca!  Era questão que transcendia o livre arbítrio de cada morador de Vitória. Meu querido bisavô... Você se lembra do meu bisavô?

- Há pouco você fez esta pergunta.

- Desculpe-me... Ás vezes eu me repito. É a idade... – disse o fantasma. – Pois meu bisavô, que era caramuru como você, portanto, seu confrade corporativo, costumava dizer que ser peroá ou caramuru era uma fatalidade geográfica, na cidade de Vitória, dividida no século XIX entre duas facções rivais, na devoção a São Benedito. Os peroás reunindo quem morava nas imediações da igreja do Rosário; e os caramurus, os moradores do morro de São Francisco e suas redondezas. Portanto, não chame de antiqualha o que era uma injunção locativa e devocional para a população de Vitória.         

- Mas ainda que assim seja, por que fui considerado um caramuru? – indaguei em busca de um mínimo de lógica para o esbarrão que sofrera.

- Ora, meu ínclito! A resposta está em sua biografia! Vamos repassá-la. Você nasceu no Parque Moscoso, região de influência dos caramurus, onde foi recebido por Dona Augusta Mendes, parteira que atendia a domicílio. Seus avós paternos e maternos moravam por ali, onde transcorreram sua infância e adolescência. Você estudou na escola de Dona Mariazinha, na Praça do Quartel, no pé do morro São Francisco, e depois no Ginásio São Vicente de Paulo, a duzentos passos do mesmo morro. Um tio seu morava nesse morro, onde você também morou vários anos, quase colado ao convento dos franciscanos. Isso não é ser caramuru? Eu mesmo, écoute-moi, que continuo um peroá de quatro costados, sei que você é caramuru de nascença e de linhagem e se o tenho por amigo excelentíssimo é porque desconsidero o preconceito da rivalidade que devia nos antagonizar... Entende agora o âmago da questão e por que ele é seu adversário, um adversário quase empedernido?      

- Quer dizer que sofri uma trombada de um peroá fanático? 

- Peroá desalmado, o que ele é.

- Na verdade acho uma loucura sem tamanho ser tomado por um caramuru invasor da rua do Rosário em pleno século XXI – retornei à minha incredulidade.

- É o seu ponto de vista, meu digno, o seu ponto de entendimento humano. Chegará um dia – faço votos que demore – em que vai saber que não é nenhum absurdo o que se passou com você. Pelo contrário, tudo é muito compreensível, embora não suceda a muita gente. Lembra-se da parlenda infantil uni, duni, tê, salamê mingüê, um sorvete colorê, o escolhido foi você?  Mingüê com trema no u, por favor. Pois foi o que aconteceu naquela noite: você foi alvo de uma experiência extraordinária, mas não deve permitir que se repita. Podia ser peior.

- Pior...?!

- Você podia ter sofrido uma rasteira que o prostraria ao chão ou ganhar um bafo abjeto e pestilento, que o levaria ao túmulo antes da hora. Não queira imaginar a figura horrenda e azulada que é o seu adversário, desde que foi vitimado pelo cholera morbus. Torno a avisar: não passe mais pela rua do Rosário! É por ali que ele ronda, máxime depois da meia-noite, a obscura hora dos fantasmas. Vá ao teatro, assista aos espetáculos que você quiser, mas não cometa a imprudência de estacionar seu carro naquela rua. Lembre-se – e não vou dizer mais nada – que na igreja do Rosário, perto do Carlos Gomes, ficava o cemitério da irmandade a que eu pertenci com muita honra. Um cemitério oitocentista. OI-TO-CEN-TIS-TA, meu digno!  Peroá morto, escuta só, não falta na região, em estado de alma penada, antes de se espiritualizarem completamente... O “nosso amigo” é uma delas, um mau espírito, muito mais zumbi do que alma penada! E antes que me esqueça: o bodum que você está exalando até agora não é odor cadaverino. É de peroá podre, pegado no esbarrão com seu desafeto. Uma vez você me recomendou que eu tomasse um banho na fonte do Parque Moscoso, para me livrar de um cheiro nojento de churrasco, que se grudou no meu espectro. Eu poderia receitar a mesma mezinha para você. Mas para o fedor que o contaminou o descarrego tem que ser mais forte: tomar o quanto antes um banho com sal grosso, da cabeça aos pés.

Com esta recomendação terapêutica o fantasma do centro histórico de Vitória sumiu de cena depois de me dar um tapinha nas costas com a mão engelhada que me pareceu um toque de peroá saído de um refrigerador de peixaria. Foi um gesto amável para me levantar o ânimo, assim o entendi, mas que teve o efeito oposto de me enregelar os ossos e de me salamemingüar como um sorvete colorê. São Benedito me purifique, no banho de sal grosso que vou tomar!

 

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