Acordou cedo, apesar de ser domingo. Levantou-se da cama com cuidado, para não acordar a mulher. Foi à cozinha, fez o café, colocou-o na garrafa térmica e saiu de carro para comprar o pão.
Na padaria foi reconhecido pela caixeirinha:
– Bom dia, seu José Carlos. Tão cedinho e o senhor já está comprando pão...
– Há mais de quarenta anos que durmo com as galinhas e acordo com os galos... – disse, rindo.
Na volta para casa, rodou pela pracinha do bairro.
Foi quando viu a jovem sentada no meio fio, a cabeça enfiada nas mãos, soluçando. Usava uma blusa trespassada sobre os seios soltos, uma saia azul comprida, e estava descalça.
Ele parou o carro e foi saber o que acontecera, movido por um repentino sentimento de solidariedade domingueira.
– Por que você está chorando, minha filha?
Chamou-a de filha num recurso de abordagem.
Como resposta, o choro aumentou copioso, estremecido.
– O que foi que houve com você, menina?
Chamou-a de menina para estreitar a abordagem.
Ela retirou o rosto do oco das mãos, cravou no desconhecido dois olhos azuis alagados de lágrimas, e aos soluços respondeu:
– Era melhor que eu morresse...
– Não diga isso! Você é muito jovem para morrer...
– Jovem, mas infeliz.
– Infeliz, por quê?
– O senhor não está vendo o meu estado. Eu saí com um cara para curtir a noite e veja como acabei: largada na rua como um lixo. E voltou a soluçar de cara enfurnada nas mãos.
– Você quer um café? – perguntou ele prestativo.
Ela fez que sim com a cabeça, deixando escapar do côncavo das mãos o aviso choroso:
– Mas não tenho dinheiro nem pro ônibus...
– Venha comigo... Eu a levo para tomar café.
– Então pega minha sandália...
Ele procurou a sandália com os olhos e não a viu por perto.
– Você deixou a sandália onde?
– Sei lá ... Por aí... Em algum canto... – disse ela, de dentro das mãos. – Procura!
– Como é a sandália?
– É uma sandália, pô, uma sandália prateada... Acho que “ele” jogou na rua quando me enxotou do carro.
E mostrando a cara, disse: – Será que além de tudo eu tenho de procurar a sandália?
Ele andou para um lado, andou para outro e viu um pé da sandália sobre a tampa de um bueiro. Foi até lá e pegou-a pela alça. Não achou o outro pé e mostrou a que tinha na mão:
– É esta aqui? – e a pergunta lhe soou idiota.
Ela olhou a sandália e disse com indiferença: – É.
– Eu não achei o outro pé...
– Deixa pra lá. Me leva pra tomar café. Pode ser que eu melhore.
Ele ajudou-a a se levantar do meio-fio segurando-a pelo braço, viu que era mais pesada do que aparentemente parecia, e conduziu-a até o carro. Abriu a porta do carona, ela entrou meio cambaleante, atrapalhada com a saia longa. Ele entregou-lhe a sandália, que ela pôs no colo e, pelo lado de fora, ele bateu a porta. Assumiu em seguida a direção do veículo e deu a partida.
Só então lhe ocorreu a grande questão: aonde levá-la para tomar café? Ainda era cedo, não havia no bairro nenhum botequim aberto, na padaria não serviam café.
Resolveu ir até a casa dele, na quadra próxima. Pararia o carro, iria lá dentro e traria um copo do café que havia posto na garrafa térmica. Nada mais do que isso. Com uns trocados para o ônibus despacharia a menina para cuidar da vida dela.
Na frente da casa, parou o carro.
– Espere um minutinho que vou pegar o seu café.
Com a voz quase sumida ela retrucou:
– Não vai dar... Preciso ir ao banheiro... Estou passando mal.
Ele percebeu que ela realmente não estava bem, o rosto antes banhado por lágrimas agora estava lívido e coberto de suor.
– O que você está sentindo? – indagou nervoso.
– Estou passando mal, porra! Preciso de um banheiro.
Ele amparou-a para sair do carro e levou-a com cuidado até o banheirinho social da casa, ao lado do hall de entrada.
– Não faça barulho – pediu, enquanto ela trancava a porta com estrondo.
Seguiram-se alguns intermináveis segundos de silêncio. De leve, para não acordar a mulher, ele bateu na porta do banheiro dando-se conta de que não sabia o nome dela.
Nenhuma resposta. Mais duas ou três pancadinhas discretas e lá de dentro irrompeu um jorro de vômitos avassaladores.
– José Carlos, você está passando mal? – gritou do quarto a mulher que acordara com o rugido esgoelado.
– Não é nada... Continue a dormir... – disse ele.
Mas a mulher já estava ao seu lado, assustada.
– Quem está no lavabo? – perguntou espantada.
– Não é ninguém, ou melhor, é uma garota... – respondeu atrapalhado.
– Uma garota? Que garota?
– Eu explico... É uma menina que estava passando mal na rua e eu deixei ela usar o nosso banheiro.
– Você trouxe uma piranha para dentro da nossa casa? – agitou-se a mulher.
– É uma pobre coitada...
– Uma pobre coitada que vem vomitar no nosso banheiro social a droga que consumiu nas sacanagens da noite? Essa é a sua pobre coitada...?
– Não é nada disso... Ela estava chorando na calçada...
– E aí o senhor meu marido deu uma de bom samaritano e trouxe ela para sujar o nosso lar! Vai ver que é uma putinha de menor idade... Pois trate de tirá-la daí o quanto antes...
Dentro do lavabo, instaurou-se o silêncio.
– Ainda por cima, você deixou a sua protegida se trancar no banheiro... Mete o pé na porta, homem! Ela pode estar desmaiada ou morta. Já pensou nas consequências da sua gentileza?
Pressionado pela mulher, ele meteu o pé na porta que se soltou da fechadura. Em meio ao vômito, que se espalhava em torno do vaso sanitário, a jovem estava desacordada no chão, o cabelo caído sobre o rosto, a blusa escancarada deixando os seios à mostra, a saia longa encharcada de gosma.
– Puta que pariu! – disse ele.
– Puta que pariu digo eu! – bradou a mulher ao seu lado. E ordenou, decidida: – Chame a ambulância do Shamu.
– Do Shamu? – repetiu ele abobalhado.
– Do Samu, idiota! Pegue o catálogo, veja o número!
Quando a ambulância chegou e a garota foi retirada na maca, o paramédico indagou:
– Quem vai acompanhar a paciente?
– Acompanhar na ambulância? – perguntou a mulher.
– É. Alguém tem que se responsabilizar por ela. Tem que ir junto.
– Se alguém tem que ir, eu vou – disse José Carlos oferecendo-se para o sacrifício.
– Vai coisa nenhuma! – protestou a mulher. – Já basta o que aprontou nessa manhã desgraçada de domingo. Deixa que eu vou.
E falando para o enfermeiro:
– Aguarda lá fora enquanto mudo a roupa...
– Você faz mesmo questão de ir? – indagou José Carlos, vendo a mulher se vestir.
– Vou pra botar um ponto final nessa trapalhada que o senhor arrumou.
– E você vai dizer o que no SAMU? – perguntou o trapalhão.
– Até lá eu invento uma desculpa. Digo que é a filha da empregada que passou mal e depois eu volto de táxi. Quanto ao senhor, faça o favor de lavar o lavabo bem lavadinho antes que eu chegue. Depois vamos ter uma conversa séria.
Quando a ambulância partiu, José Carlos fez a parte que lhe tocava no imbróglio que armara: lavou o lavabo bem lavadinho. Em seguida, resolveu guardar o carro na garagem.
Pegou a chave, abriu a porta e entrou.
No lado do carona uma sandália prateada abandonada parecia sorrir para ele com deboche.