Coincidências

Eu ainda não sabia, mas a coincidência estava em marcha. Estando em marcha eu iria aprender que as coincidências acontecem dentro de um ritmo e de um tempo que não nos pertencem, por serem só delas.

Mas vamos secionar o papo para dar-lhe seguimento. 

Primeira Seção. 

Na Livraria Logos, Ivan Borgo fala para os amigos sobre uma possível mecânica que parece comandar as coincidências que sobrevêm aos humanos. Lera algo sobre o tema, não disse onde, nem eu perguntei. Somente ouvi.

Mas acreditei em Ivan, como sempre faço, até porque, para mim, Ivan me lembra os incontroversos pensadores do velho Império Romano de saber apurado.

No caso dele, a coincidência vivida foi de certa melodia que começou a ouvir exatamente quando estava pensando nela. Se bem lembro foi o que nos contou e comentou, filosofando como sempre, porque tudo que Ivan conta é com um fundo filosófico insinuado como trilha sonora que rola em surdina.

Mas naquele momento eu não sabia que a fala de Ivan já era a engrenagem da coincidência que estava se movimentando na minha direção. No tempo devido é que iria me lembrar do que Ivan dissera e ficou embutido nos meus ouvidos.

Segunda Seção. 

Convidado para participar de um encontro sobre o patrimônio etnográfico de Santa Leopoldina eu aceitei o convite e dei-me à tarefa de preparar o meu palavrório. No romance Fuga de Canaã, de Renato Pacheco, passado em Santa Leopoldina, busquei um pé de apoio. 

Há na primeira parte do romance uma passagem que descreve, com primor de informações etnográficas, o interior de uma casa de descendente alemão que me veio a calhar.

Nessa descrição, Renato mencionou de lambujem o célebre quadro Os Dois Caminhos. O trecho é o seguinte: “No quarto onde eu estava, impecavelmente limpo, havia a conhecida gravura baseada em Mateus, 7:13, 14: Der breite und der fehmalle Beg – de um lado um caminho florido, largo e prazenteiro, que desembocava no inferno; do outro, o caminho estreito que dava no Céu”.    

Considerei que a referência literária era um maná caído na minha bandeja, propiciando-me tratar de Os Dois Caminhos num desdobramento para a palestra que eu estava costurando. E me lancei no encalço da gravura, numa busca pela Internet.  

Terceira Seção.

O quadro, que localizei, é um ícone religioso, com sentido espiritual e moralista, muito difundido entre os colonos europeus e seus descendentes no Espírito Santo, sobretudo os não-católicos.

Trata-se de uma estampa repleta de elementos figurativos referenciados a passagens bíblicas. Em seu conjunto, representa os caminhos possíveis de serem trilhados pelos homens, um deles, o caminho do Mal, que leva à condenação no Inferno; o outro o do Bem, destinado ao Paraíso. É assim uma ilustração com objetivos evangelizadores e pedagógicos, cuja versão inicial surgiu na Inglaterra em 1856, difundindo-se pelo mundo. Como veem, fiquei por dentro do assunto. 

Um assunto que se oferecia com sabor de desafio para ser encaixado numa palestra sobre patrimônio etnográfico, numa abordagem da dimensão imaterial que os acervos etnográficos possam ter.

Topei entrar por esse caminho e por ele me aventurei para o Bem ou para o Mal.

Quarta Seção.  

Dias antes da palestra, minha filha mais nova me aparece em casa com uma estampa numa pasta plastificada. Bato o olho nela e era... o quadro Os Dois Caminhos.

- Como você conseguiu isso?

- Ganhei na feira de Vila Velha, de um casal de chineses. Acho que são chineses ou coreanos... Eu sou freguesa deles. Vi a gravura e pedi para tirar uma xérox. Antes eles tinham me perguntado se eu tenho fé, se acredito na reencarnação. Gostaram do que respondi, fazendo uma série de curvaturas de corpo, com as mãos juntas. Depois falaram entre si, na língua deles, e me deram a gravura de presente. 

Expliquei então à minha filha que eu ia falar sobre aquele quadro na palestra de Santa Leopoldina.

- Que mundo pequeno! - disse ela.

- É verdade – respondi, ouvindo em surdina a trilha sonora sobre a mecânica das coincidências que Ivan Borgo deixara embutida nos meus ouvidos.

PS: Depois de escrita a crônica, verifiquei que o quadro os Dois Caminhos anda em franca difusão pela Internet. Vá explicar uma coisa dessas.

 

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