A geladeira nova

- Acredite ou não, a geladeira que você comprou, contra o meu gosto, está espirrando de madrugada - disse o marido para a mulher no café da manhã.

- Espirrando...?!  

- Um espirro nada poético, como diria o poeta Fernão Ferreiro.

- Lá vêm as suas implicâncias com a geladeira. Há dois meses você disse que ela estava murmurando; há um mês, que estava resmungando; há três dias, que estava tossindo. Agora é espirrando? Não demora você vai inventar que ela está andando pela casa como um fantasma...

- Não duvido nada – retrucou o marido. – Uma geladeira dessas, cheia de esquisitices, é capaz até de ser lésbica. Acho bom você dormir, por precaução, com a porta do quarto trancada por dentro (eles dormiam em quartos separados).

- Muito engraçadinho, muito engraçadinho mesmo... E só eu não vejo as esquisitices dela – irritou-se a mulher que mantinha no ar a faca com que passava a manteiga no pão.

- Você não vê porque sou eu que levanto de madrugada para tomar o meu copo de leite gelado. Experimente levantar também para pegar a geladeira em flagrante. E tem de ser de surpresa porque quando se acende a luz da copa ela faz silêncio na cozinha. Silêncio de cemitério. Nem parece que está ligada na tomada.

- Você precisa é consultar um psiquiatra para dar um jeito nesta sua neurose – protestou a mulher terminando de passar a manteiga no pão.

- Eu só estou avisando que sua geladeira não é normal. Se quiser acreditar, acredite.  Depois, não vai gritar por socorro quando ela entrar no seu quarto para uns agarros no meio da noite...

A birra entre os dois começou quando a mulher informou que ia comprar uma geladeira nova.

- Comprar por quê? – perguntou ele.

- A nossa já tem dez anos. É um modelo ultrapassado. Parece uma matrona. E matrona romana...

- Matrona ou não, ela funciona bem. Não gela satisfatoriamente? Não atende às nossas necessidades? Ela pode estar velha, mas não tem nenhum podre na sua lataria. Continua inteirona (teve vontade de dizer “mais inteirona do que você”, mas mudou a frase): Bem cuidada aguenta outra década sem nos dar o menor trabalho...

A mulher esperou passar a enxurrada de argumentos sacados pelo cônjuge varão do fundo de sua insatisfação conjugal e quis atingi-lo com uma bordoada definitiva que, aliás, poderia soar grata aos ouvidos dele:

- Esta geladeira está consumindo muita energia...

- Como você sabe disso? – contrapôs o marido, resistente.

- É obvio – respondeu ela. – Todo equipamento antigo consume mais energia do que um novo. Robertinho mesmo me mostrou uma estatística provando este fato. (Robertinho era o genro, casado com Lucinda, filha do casal).

- Era só o que faltava: Robertinho dar palpite aqui em casa – encrespou o marido.

- Fui eu que pedi a opinião dele e de Lucinda – disse a mulher. – E Lucinda concordou com Robertinho.

- Pois eu sou contra a opinião de Robertinho, de Lucinda, contra a sua também e contra a compra da geladeira!

- Mas pode ir tirando o cavalinho da chuva que eu já decidi. A geladeira vai vir, quer você queira, quer não – disse a mulher alteando a voz. – Vou comprá-la com dinheiro da minha poupança. Já combinei mandar a geladeira velha para o asilo dos velhos, que é um bom lugar para ela ficar. Não preciso nem pagar o carreto. O asilo manda recolher na hora. Basta telefonar.

Assim decidido – sem comum acordo entre o cônjuge varão e o cônjuge virago – veio a geladeira nova que foi condignamente instalada na cozinha com as honras da hospitalidade da dona da casa.

Era mais magra do que a que se fora e, logicamente, mais elegante. Mas, tal como a outra, era branca (da clássica linha branca das geladeiras) e tinha também o congelador independente, na parte de cima. Como novidade exibia externamente, na porta do congelador, dois círculos azuis como se fossem olhos, que piscavam alternadamente entre si.

- O que significam estes olhos? – perguntou o marido a quem a mulher apresentou a geladeira.

- Não são olhos...! São dois mostradores que indicam a temperatura térmica do congelador e da parte debaixo da geladeira. Enquanto estão piscando significa que a temperatura está sob controle. Está no ponto. Nem com muito gelo nem com pouco. Você quer ler o manual?

- Eu não tenho saco para ler manuais...

- Mas pelo menos abre a geladeira para ver por dentro.

O marido abriu. Abriu por abrir. Primeiro o congelador; depois a parte debaixo.

- Gostou?

- Não! Tem menos espaço interno do que a velha. E na parte inferior não tem onde botar as garrafas pra gelar. A outra tinha.

- É óbvio que esta também tem – protestou a mulher. – É só tirar esta armação aqui que as garrafas podem ser colocadas neste canto.

- Aí em baixo? E ainda tem de tirar a armação para criar a prateleira das garrafas? Para mim isso é um retrocesso.

- Por este simples detalhe?

- Por este grande detalhe! – rebateu o marido.

- É óbvio que você está aborrecido com a compra que eu fiz. Mas trate de ir se acostumando, meu querido, porque a geladeira veio pra ficar. E não vai ser para ficar dez anos como a outra. Dentro de cinco anos, no máximo, eu a despacho para o asilo dos velhos.

Depois deste veredicto terminativo e determinativo o marido não disse mais nada. Botou a viola no saco e saiu de mansinho (quando um não quer, dois não brigam) para tratar de outros assuntos. É obvio que aborrecido. 

Na cozinha, como se fosse a dona do pedaço, a geladeira fechava um olho e abria o outro, fechava e abria, fechava e... Toda a sua modernidade reduzia-se àqueles olhos azuis e inquietos, talvez debochados.

Talvez não! Debochados.    

 

Leia outros textos